CONFINAMENTO 2.0

 O impacto da pandemia tem sido devastador. Milhares de mortos, falência das estruturas, radicalismos que se exacerbam, economia ao desbarato. Não podíamos viver tempos mais terríveis.

Mas, no entanto, prefiro ver esta pandemia como uma oportunidade. Ainda quero acreditar nisso.

Quando do primeiro confinamento, pareceu que o mundo, de certa forma, se encheu de esperança. A terra parecia ter recuperado na sua essência, parecia que, através de uma terrivel praga, se estava renovando a si mesma, pois, de algum modo, o homem havia-se retirado de cena. Só por um momento.

Desde sempre que o Homem tem procurado regressar ao paraíso primordial. Aponta esse objetivo como algo do passado, algo que já possuiu mas que por alguma razão do destino o perdeu.

No início havia apenas um espaço interior e um espaço exterior. No espaço interior temos o coração e a mente. O coração é-nos acessível. A mente não. É no interior que a consciência cria a identidade. Duplicada em masculina e feminina. Dois lados opostos, mas que se complementam. Uma perfaz o dia (o Sol) a outra perfaz a noite (a Lua). Neste jardim interior, Adão ocupa-se em venerar a consciência, a luz do Sol que ilumina todas as coisas, Eva em deliciar-se com as sombras que a lua projeta em seu redor. Ambos se alimentam da árvore da vida, o coração. Mas a mente, o conhecimento, está-lhes vedado.

 

É então que, numa noite, Eva repara que a sua própria sombra começa a tomar umas formas mais circulares, mais insinuantes, mais sensuais. E a sua imagem reflete-se nas águas do rio. E Eva acha-se bonita. Essa beleza tem de ser partilhada. E corre a mostrá-la a Adão. Oferece-lhe essa beleza, na qual Adão se deita, vencido.

 

Numa outra versão (mais darwiniana) os primeiros homens vieram do sul, de África, e ao chegarem ao Éden (comunemente identificado com o norte da Turquia) ficaram deleitados com as suas maravilhas. Mas neste jardim só podem entrar os puros de espírito. Dois guardas de dimensões gigantescas guardam o local. Adão e Eva (e seu prol) são os únicos que admitidos no jardim, e nele permanecem durante algum tempo. Vivem felizes durante algumas gerações, até ao momento em que a Lua começa a exercer a sua influência sobre as Evas do jardim. E as Evas seduzem Adão em atos de sedução, amor e ciúme.

 

Este ato foi tomado contra as regras impostas pelos guardiões do jardim, que expulsaram Adão e o seu séquito.

 

Vencido pelo desejo, Adão perde o rumo. Perde a razão da sua existência. A sua forte conexão com a consciência, com o cosmos, rompe-se, e no seu lugar cresce o EU, um tipo de consciência diferente do anterior. Este EU não é um EU universal, é um EU pessoal, um EU que se estabelece em função do outro, em função dos outros. É do confronto com o outro que este EU ganha força. É esta a constatação que nos relata o episódio de Caim e Abel. Caim e Abel vivem em devoção para com a consciência, Caim é o EU inferior, material, Abel o EU superior, o que está mais perto da espiritualidade, da consciência. Ora, para Caim, Abel é um impedimento ao seu crescimento, pois a consciência o toma como preferido. Caim mata então Abel para lhe roubar o lugar. Mas a consciência continua a rejeita-lo. Porque Caim não percebe que ele mesmo caiu na rede da sua própria traição.

 

O que nos diz sobre o homem o primeiro assassinato da história?

 

A referida história passa-se fora do jardim do Éden. Numa época em que o Homem perdeu o favoritismo da consciência e todos os atos se haviam tornado em abnegação: o homem ansiava por perdão. Ora, neste contexto, o perdão é um contorno da lei. Eu pequei, eu infligi a lei, eu não respeitei a lei da consciência e, portanto, fico fora da sua proteção. Sou expulso do jardim. O jardim é o lugar onde reside a consciência, onde toda a aventura humana começa. E começa com a definição de identidade. Eu sou.

 

Este lugar onde reside a consciência, é um espaço interior formado pela mente e que abrange o coração, a sensação, os sentidos. Os sentidos são a porta para o exterior, sendo três os guardas: o querubim do olhar, o querubim do escutar, o querubim do falar.

 

Estes três querubins são os guardas da consciência, são os filtros do nosso espaço interior; físico e mental. Enquanto o nosso físico foi meramente vegetativo, delimitando-se às atividades físicas de sustentação do jardim, do cuidar do jardim (regando-o com a água que nele próprio nascia) e alimentando-se dos frutos que dele colhia, o jardim floresceu com uma enorme luz solar, fornecendo toda a paz e felicidade que se queira imaginar. Mas com a luz veio também a sombra. E onde há sombra há sempre luz.

 

A luz de Eva é mais cristalina e profunda, contrastando com a luz solar, que é mais superficial e calórica, concedendo-lhe, por isso, contexto: quando a sua luz fenece, a luz da lua vem repor o equilíbrio. Adão é o sangue que irriga do coração, cheio de oxigénio solar. Mas ao fim do dia, o oxigénio desaparece transformando-se em Eva. Mas a Lua de Eva vem e purifica Adão que regressará rejuvenescido, no dia seguinte à árvore da vida. O coração.

 

Da árvore da Vida, Adão e Eva estendem-se em rios por todo o jardim, banhando também uma outra árvore: a árvore do conhecimento do bem e do mal. Ao atingir esta árvore, a luz de Eva abre uma cisão irreparável na árvore do conhecimento. Ou melhor, Adão e Eva, quando se juntam na árvore do conhecimento, adquirem ambos, cada um na sua maneira muito particular, características diferentes, provocando uma cisão na árvore, que depois se irá estender a todo o jardim. E neste momento, Adão e Eva ganham consciência de si mesmos, e do seu papel no jardim. É então que os portões do jardim se abrem e os querubins os expulsam para o exterior. A partir daquele momento, os olhos de Adão abriram-se e depararam com os de Eva. Os seus ouvidos escutaram-se. As suas bocas emitiram sons indescritíveis. Os seus corpos ganharam vida e expressão. Pela primeira vez olharam-se como outros.

 

Mas neste novo espaço, fora do jardim do coração e agora instalados na realidade da mente, Adão e Eva apercebem-se da solidão em que ambos vivem. E esta solidão aproxima-os. São ambos desconhecidos num mundo que ainda não percebem muito bem. Este destino comum aproxima-os. Vão juntos para todo o lado. Partilham a vida juntos. Enfrentam as adversidades juntos. Partilham honestamente os deleites do dia e da noite, da luz solar e da lua. E um dia descobrem que estão nus. Que o calor do dia e da noite já não são tão atraentes. Precisam abrigar-se. Há chuva. Há neve. Há frio. Têm de cobrir o corpo para se aquecerem. Os seus corpos juntos também fornecem calor. Uma energia desconhecida impele-os a explorar os seus próprios corpos. De um e do outro. Em prazeres nunca sentidos e imaginados. E ao prazer do sexo e do calor, vem o frio da dor. Dos filhos. E subitamente, desta união, a tribo cresce. A companhia começa a ser desejada. Quanto maior o séquito, maior a proteção contra as contrariedades do tempo, são mais braços para caçar, para edificar cabanas, mas, ao mesmo tempo, quanto mais bocas se alimenta, mais EUs se criam, sendo uns mais sedentos que outros, e, aos poucos, tudo se transforma numa simples batalha carnicenta de EUsinhos. Cada um mais afastado do centro, do jardim que os concebeu.

 


 

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