11 ABRIL
Sigo por um caminho de terra
paralelo à margem do rio. Há medida que vou avançando vou-me libertando de
alguns objetos que trago comigo num saco de pano. Estes objetos são as memórias
de uma cultura apreendida ao longo de mais de 50 anos e que não se prendem
apenas a esse espaço de tempo. Elevam-se muito para além disso, no genoma
cultural familiar, nas suas tradições, passadas de geração em geração, nas normas nacionais, europeias e mundiais, que regulam os acordos sociais e
económicos entre os indivíduos e entre as nações, todos eles modelados e
controlados pelo poder do estado (político e religioso) e pelo mercado. Uma
sociedade adormecida e embalada por ritos culturais que apenas servem para
enaltecer e prolongar o sonho.
O primeiro objeto de que me
desfaço, é de uma garrafa contendo um produto de limpeza: "Culture Cleaning"1. A
garrafa, ao cair junto à margem do rio, está já vazia. Esgotada. Todo o produto
desapareceu, de tanto ser usado. Esgotado, deixou de ser útil. A sua atuação
revelou-se inútil. As roupas foram inúmeras vezes lavadas, mas as nódoas são
profundas e não saem. É impossível remover a cultura adquirida. Todos esses
anos de aprendizagem e de conhecimento. Tudo o que já existe sempre existiu. Culture is something inevitable.
E assim sigo o caminho,
deixando-a para trás. Sabendo que devemos olhar para a cultura como um
componente de memória da mente, mas que não é quem nós somos. É apenas uma
roupagem que usamos como outra qualquer.
O banho cultural é algo que na sociedade contemporânea se revela importante e necessário. Efetivamente, a cultura contemporânea bombardeia o indivíduo com spots e pacotes culturais de todo o género, predominando cada vez mais uma cultura de massas de baixo nível, ligada a interesses financeiros, políticos e religiosos. Uma nódoa cultural que na nossa sociedade se tornou cada vez mais actuante e refinada, tornando a nossa sensibilidade cada vez mais vulnerável às suas investidas. A cultura estratifica-se em várias camadas que vão actuando sobre a nossa sensibilidade: a cultura popular sectarizante (subjacente ao tipo de cultura promovido pelos clubes de futebol, seitas religiosas ou partidos políticos), a cultura popular erudita (subjacente às tecnologias tradicionais de produção cultural, como o artesanato, a cestaria, os bordados, a música popular, as danças tradicionais, etc) e a cultura contemporânea (inerente à produção de objectos contemporâneos que refletem a aatualidade de um determinada sociedade: obras de arte, peças de teatro, dança, música, cinema, literatura, etc).
A cultura popular sectarizante é a cultura dos estratos sociais e intelectuais mais baixos, que na generalidade são movidas por lógicas de grupo e alguma incapacidade em raciocinar por si própria. É a cultura dos imbecis desprovidos de gosto ou sentido estético. Este setor é ocupado pela maior parte da população mundial. A cultura popular, enraizada na tradição, tem manifestações próprias que vivem à base da recordação e preservação de culturas passadas, na maior parte das vezes retrógrada e amorfa. A cultura contemporânea, mais avançada intelectualmente, é também aquela que se reveste de maiores contrastes, indo do puro cabotinismo ao eruditismo puro.
Que nódoas são essas que subver-em a cultura, a camisa que veste todo o homem sensível? A camisa da cultura veste o corpo do homem sensível, homem sujeito às poeiras que o ambiente que o rodeia vai atirando contra o seu corpo. Esta camisa cultural é o seu modo de resistir aos constantes ataques contra a sua sensibilidade promovidos pelos mass media. Esta camisa protectora vai-se sujando aos poucos, vai-se cobrindo da poeira da trivialidade. É necessário lavar a camisa de vez em quando para revitalizar a sensibilidade cultural do indivíduo.
Mas a sensibilidade de cada um não é preservada apenas pela camisa que vestimos no dia a dia. O espaço que habitamos é também importante na construção dessa identidade cultural, e esse espaço é também sujeito a detritos e germes que ofuscam a própria cultura do local. É necessário também uma limpeza ao local que habitamos, para assim preservarmos a nossa identidade cultural, por um lado, e nos protegermos melhor contra as poeiras do ambiente.
"... a transformação da cultura em mercadoria constitui um meio de total submissão dos seres humanos a uma lógica instrumental cujo paralelo na esfera política é a forma da ditadura totalitária". Theodor Adorno, Sobre a Indústria da Cultura, Algelus Novus Editora, Coimbra 2003.
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1- Unknown Artist Cleaning Produts, Agosto 2009.
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